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Os que pagam para morrer fazem perguntas

António Marujo

Tareke Brhane tinha 17 anos quando saiu do seu país, a Eritreia, um dos mais pobres do mundo. A ideia era chegar à Europa e começar vida nova. “Sem conhecer a língua, sem trabalho, sem quase nada de meu, a começar do zero.” Tareke fugiu pelo deserto, esteve preso, foi vendido por traficantes – pagaram por ele 50 dólares, cerca de 44 euros –, sentiu a morte por perto várias vezes, atravessou o mar Mediterrâneo como tentaram milhares de outras pessoas nos últimos 15 anos. 

Brhane esteve dois dias em Fafe, a participar na edição 2016 do Terra Justa – Encontro Internacional de Causas e Valores da Humanidade. A organização que dirige – o Comité 3 de Outubro – foi uma das homenageadas de quinta-feira à noite, o terceiro dia da iniciativa. 

É por ter atravessado o mar que Tareke se considera “um filho do Mediterrâneo, um dos que sobreviveram a prisões, ao deserto”. E acrescenta: “Noventa e nove por cento de nós pagam para ir morrer. Arrisco a minha vida por um por cento de possibilidades.”

Não será tanto assim o que as estatísticas mostram: dos mais de um milhão que atravessaram o Mediterrâneo desde o início da década, morreram algumas dezenas de milhar naquele que se tornou um grande cemitério de água (em 2015, terão sido quase três mil pessoas, segundo a Organização Internacional das Migrações). Mas os números, já de si trágicos, são apenas uma pequena parte do que sofrem os refugiados: no caso de Tareke, e dos eritreus que fogem (são o terceiro maior grupo em fuga, após os sírios e os afegãos), eles tentam escapar a uma violenta ditadura que viola permanentemente os mais elementares direitos.

Um refugiado passa a vida a ter de se “justificar”, a ser metido em prisões ou em campos – no Sudão, na Líbia, ou na Europa. “Eu fui metido com 34 pessoas num pequeno jeep. Imaginem que vos roubam o vosso smartphone. Ficariam irritados. Agora imaginem que vos tiram a casa, os bens, a família, tudo... Como ficariam?” Para comer, muitos dias só há farinha misturada com água. “O refugiado torna-se um produto de um traficante que vende a outro traficante...”

Há outras realidades: “Comigo havia uma família, marido e mulher. Se houver uma mulher, uma mãe ou uma irmã, elas correm o risco de ser violadas à tua frente, sem que nós possamos reagir.” A vida – o que resta dela – está nas mãos de outra pessoa, que fica com o passaporte, o dinheiro, o poder de vender pessoas. 

As mãos. São elas, muitas vezes, a última ponta do desespero, quando finalmente chegam – os que chegam – à costa. As mãos que, mostraram as alunas da Escola de Ballet de Fafe na conferência e espectáculo da noite de quinta-feira, se esticam de um lado a pedir socorro, ou se estendem do outro, a ajudar quem chega – mesmo contra as vontades de tantos governos e de uma União Europeia desnorteada.  

“Sou uma pessoa com sentimentos, amo e choro como vocês”

“O que são os que chegam? Eu sou apenas um número para as estatísticas dos que morrem ou dos que sobrevivem. Mas eu sou uma pessoa com sentimentos, amo, choro, faço tudo o que vocês fazem”, afirmava Tareke, numa das intervenções, no Café Com Letras cheio e com muitos estudantes, durante uma das conversas de quinta-feira. 

Cinco anos depois de ter saído do seu país, Tareke Brhane chegou à Europa, começando a colaborar como tradutor com os Médicos Sem Fronteiras ou a Save The Children. 

A 3 de Outubro de 2013, pelo menos 368 pessoas morreram num naufrágio no Mediterrâneo, ao largo de Lampedusa. O Papa Francisco disse que era “uma vergonha” e Tareke achou que era altura de começar a fazer alguma coisa para sensibilizar as opiniões públicas europeias. Nasceu o Comitato 3 Ottobre, para defender a institucionalização de um dia de memória e reflexão sobre os refugiados que procuram viver em paz. 

A boa notícia surgiu há três semanas, quando o Parlamento italiano aprovou a ideia. Tareke espera, agora, que ainda em Abril o Parlamento Europeu tome idêntica decisão relativa a todos os Estados-membros da União. 

“Agora é giro: o Tareke vai a Bruxelas, está com o Papa, etc... Antes, não era ninguém”, conta o próprio, na terceira pessoa. “Vocês nasceram aqui, podem viajar por todo o mundo. Ser livre quer dizer poder decidir onde viver e onde morrer. E, por ter nascido onde nasci, tenho de ficar ali, não posso ir para sítio nenhum.”

E do que se fala quando se fala dos refugiados que procuram a Europa? Apenas três por cento deles querem vir viver para aqui. Por contraste, só o maior campo de refugiados do mundo, no Quénia, tem cerca de dois milhões de refugiados. “Dediquem só cinco minutos para tentar compreender, não para mudar a vossa opinião. Os que morrem no Mediterrâneo são mortos invisíveis, por isso é importante colocar o tema da imigração nas escolas e dar instrumentos para decidir.”

Tareke sabe, no entanto, que falar não é fácil – não tão fácil como vestir uma tshirt como a do Comité, por exemplo, que diz “proteger as pessoas, não as fronteiras”. “A experiência enriqueceu-me muito, mesmo se com muito sofrimento. Tenho de falar de violência, de mortes; fiz uma volta pela Itália, mas custa muito.” E de novo o apelo à fantasia: “Imaginem que são violados e têm de contar essa experiência dezenas de vezes... Eu faço-o, porque é preciso dar voz a estas pessoas... Caso contrário, ninguém falará delas.”

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