António Marujo
Uma promessa: detrás desta cortina, podemos ver o rosto de um refugiado. Levanta-se o pano e um espelho mostra a própria face. Um refugiado pode ser qualquer um de nós, é a mensagem que as iniciativas de rua do Terra Justa – Encontro Internacional de Causas e Valores da Humanidade, pretendem passar no centro de Fafe, desde terça-feira.
As frases no túnel que fecha o Caminho das Causas pretendem colocar cada visitante na pele do outro: “E se de repente a sua casa ficasse destruída? E se de repente tudo o que conhece desaparecesse?” Nem de propósito, a iniciativa coincide com o projecto nacional de colocar os alunos das escolas portuguesas a pensar o que levariam numa mochila, se tivessem de fugir de repente.
“E se de repente tivesse de fugir para se salvar e os seus familiares?”, pergunta outro cartaz do túnel. “Nunca ninguém nem falou em querer sair” do seu país, responde Eugénio Fonseca, presidente da Cáritas Portuguesa, que participou esta quarta-feira, dia 6 de Abril, numa das conversas de café programadas.
Eugénio Fonseca esteve recentemente em campos de refugiados no Líbano. Neste país, em cada três pessoas, uma é refugiada (e em cada quatro, uma é refugiado sírio). “O que os refugiados queriam era regressar à Síria”, afirma o presidente da Cáritas. “Os que estão a vir [para a Europa] não são os mais pobres. Os que estão a vir são os que ainda conseguem pagar a redes de criminosos que os colocam no mar, à procura de um país que os acolha.”
Eugénio Fonseca participava no debate com o título “Eu tu e eles, que mundo é este?” A resposta à pergunta é curta: “O modelo civilizacional que temos está dominado pelo ninho das vespas dos offshores; a riqueza existe, mas tem estado escondida”, diagnostica Eugénio Fonseca.
O presidente da Cáritas quer que se desfaçam medos. Nas paredes exteriores do túnel, lêem-se mensagens que tentam desfazer preconceitos e ignorâncias: “Porque é que os países muçulmanos não recebem refugiados?” Não, não é verdade: Turquia, Líbano, Jordânia, Egipto e outros países de maioria muçulmana recebem muitos refugiados. “Os refugiados não são pobres, até têm smartphones.” Pudera, esse é um instrumento “vital” de sobrevivência e contacto para quem foge de uma guerra.
O presidente da Cáritas contesta outro preconceito: “Esta não é uma questão religiosa. Há outros interesses e muitos posicionam-se na defesa destas pessoas, mas continuam a alimentar a guerra na Síria”, por exemplo. E acrescenta: “Quando grita mais alto a sobrevivência e o perigo de perder a vida, não há fronteiras que resistam.”
Referindo a importância da anunciada viagem do Papa Francisco à ilha de Lesbos, na próxima semana, Eugénio Fonseca contesta ainda a actual política europeia sobre o tema: “A Europa não tem sido capaz de lidar com o problema, porque perdeu identidade. Os refugiados que procuram a Europa vêm também à procura de um modelo político diferente do modelo ditatorial” do qual fogem.
Um salto em paraquedas
O festival Terra Justa decorre até sábado. Esta quinta-feira, serão homenageados dois eritreus: o padre Mussie Zerai, conhecido como o “112 do Mediterrâneo”, por ajudar a salvar muitos refugiados em risco; e Tareke Brhane, do Comité 3 de Outubro. Na sexta, será António Guterres, ex-alto comissário da ONU para os refugiados.
A tarde do segundo dia do Terra Justa iniciou-se com o “salto pela memória”, de cinco paraquedistas da equipa “Facões Negros” para a praça Mártires do Fascismo. Foi a forma de iniciar a homenagem ao corpo de Enfermeiras Paraquedistas Portuguesas (EPP), que existiu durante a guerra colonial, para fazer evacuações de feridos.
As EPP foram um “enorme exemplo de solidariedade e companheirismo”, disse o tenente-coronel José Aparício, na conversa que decorreu na pastelaria Shake, no centro de Fafe. “Naquele tempo, ser mulher, enfermeira e paraquedista era um passo impensável. E elas apareciam sempre que havia um ferido grave.”
As 46 mulheres – que mal acabavam uma missão começavam outra – “viram e ouviram coisas que ainda hoje não contam”.
Rosa Serra confirma: esteve mais de três anos em teatros de guerra, entre a Guiné, Angola e Moçambique, depois de integrar as EPP desde 1967. Em Janeiro de 1970, na Guiné, numa região conhecida como “corredor da morte”. Um batalhão atingido por um ataque ficou com vários feridos e o helicóptero de evacuação já não tinha lugar. O comandante pediu-lhe por tudo para levar um terceiro ferido, meio inconsciente. “Recordo o olhar de súplica do comandante, porque eles também sofriam por ver os outros sofrer...”
O comandante sentou o ferido ao lado do condutor e Rosa teve de viajar a segurá-lo de lado, para ele não cair para cima do piloto. “Tento não me lembrar... Essas memórias não são como fantasmas, mas são muito dolorosas...”